Noite de Consoada



 

              Este profundo silêncio, depois que a chuva e o granizo fustigaram as ruas da cidade branca, lembra-me que pelos campos, chovendo, há um cheiro de terra que se exala brandamente, após o temporal. E este silêncio de paz é, para Mim, como um odor de terra bravia, e sonho, no silêncio, profundo, e todo meu, que algo me pertence.

              Talvez pudesse ser assim. Talvez o cheiro, a cor, o silêncio, a paz pudessem ser a parte material da minha vida e isto fosse o que bastasse para uma consoada feliz. Mas não basta, porque sei que agora, ao cair da noite, há anjos de deus que vagueiam tristes e perdidos, e sem esperança.

              Acerco-me, então, de uma janela e procuro, na densidade sombria do céu que já escureceu, uma estrela. Uma estrela igual àquela que guiou e conduziu os três reis para o estábulo mais mesquinho de Belém. Mas o meu céu denso, e carregado de neblina, ofusca, na noite, todo o brilho de luz e não posso, assim, ir ao encontro de um redentor para os desesperançados.

              Faço parte da triste miséria humana. Resigno-me, acomodada… os convidados para o jantar de noite de consoada estarão prestes a chegar… que diriam?, se, chegando, não me encontrassem em casa ou, se chegando, eu dissesse que partiria em busca de um salvador… Talvez um louco não equacionasse, em termos de lógica e de razão, motivos e justificações para não sair de casa, numa noite de natal, deixando para trás uma família, amigos, uma ceia. Mas como explicar que me tenha acercado da janela em busca de uma estrela que me conduzisse até àquele que pudesse resgatar a esperança no mundo? Estranha sanidade! Estranha loucura!

              Percebo que o que sinto em Mim é apenas uma suave perturbação. A minha habitual suave perturbação, que vem ao meu encontro, inesperadamente, como um aguaceiro que desaba de súbito num dia calmo e tranquilo sem avisar.

              Mas tocam, agora, à campainha da porta. É ainda cedo para a chegada dos convidados para a ceia de natal. Vou ver. É o filho mais novo, de quatro anos, da vizinha do lado, o Joaquim. Traz um prato de filhoses, acabadas de fazer para me oferecer e deseja-me um feliz natal.

              - Feliz natal, Joaquim, - digo eu também, procurando sair do torpor da minha perturbação e acrescento, perguntando – sabes onde há uma estrela, Joaquim?

              O Joaquim sorriu, disse que sim, correu a casa, e voltou, trazendo nas mãos uma estrela muito dourada, brilhante, toda oiro e luz, que estendeu para Mim. E eu tomei a estrela nas minhas mãos e perguntei:

              - Joaquim, posso seguir a estrela?

              Sorridente, o pequeno toma, de novo, a estrela das minhas mãos para as mãos dele, diz-me «-vem»; e eu sigo o caminho da estrela, como quem desce do céu uma escada até à terra.

 

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