Noite da Luz

 


Véspera do dia de natal. A azáfama de sempre. Por isso estranhei-me por, por entre o burburinho, só eu retardar o meu passo e, como quem passeia num dia de verão ameno, não ter pressa nem urgência de chegar a nenhum lado.

E era, pois assim. Ninguém me esperava nem eu esperava por ninguém. E ainda que pudesse parecer ser um destino triste, o certo é que eu estava em paz e tranquila.

Quando terminei o passeio na tarde, recolhi ao meu lar.

Foi, então, que tudo aconteceu –

um casal muito pobre caminhava, procurando um sítio para passar a noite. A mulher grávida, no termo da gestação, tinha um aspeto muito jovem e parecia que dela se irradiava uma paz profunda capaz de tocar cada coração humano. Ninguém os recebia nas hospedarias e tiveram de encontrar abrigo num velho estábulo de animais. Aí, nessa mesma noite da chegada, nasceu um menino –

e eu vi-me, não no recato e conforto da minha casa, mas no meio de um caminho pedregoso, como pastora, seguindo para o local em Belém onde um deus nascera.

- Venho adorar o deus-menino. – Disse eu, chegando ao estábulo.

E, em silêncio, numa oração, olhava embevecida a criança acabada de nascer.

Nesse momento, o menino-deus sorriu para Mim e eu sorri para ele. Era o mestre que falava na pura linguagem dos anjos e anunciava aos homens e a Mim que esta era a noite da luz. Era uma noite mais clara do que um dia, porque o Amor nascia no nosso coração e cada homem aprendia o significado do perdão.

Nesta atitude piedosa, permaneci por muito tempo. Um infinito tempo. Até que deste torpor despertei e, de novo, a casa, a sala, o conforto do lar me trouxeram para a minha realidade deste tempo presente. Não podia permanecer em casa, mas era noite. O que fazer? Calcorrear ruas, sair pela cidade? Não podia ser.

Sentei-me, então, junto à secretária. Aproximei-me do computador, e escrevi, de um só fôlego, a minha verdade de fé. Nada de maravilhoso nem de extraordinário. Apenas seis ou sete linhas, como é meu hábito de escrita, divagando sobre a importância do sorriso. Dei um título: Coisas simples. Depois, como se isso fizesse uma grande diferença para o universo, partilhei o que acabara de escrever na internet. Quase de imediato, uma visualização, outra, e outra, e outra… foram os pastores e as pastoras que, como eu, adoraram em silêncio um deus-menino, na solidão de uma noite de natal.

 


Os Três Reis do Oriente

 


 

No Centro Comercial, as decorações de natal abrilhantam de luz e de cor os corredores e as praças, habitualmente despidos de ornamentos e, por isso, habitualmente mais incaracterísticos. Também as lojas se adornam festivamente, sendo que cada uma delas expressa de um modo particular esta quadra de alegria. Grandes estrelas, azevinho, luzes, árvores de natal podem ser encontrados por todo o lado das galerias, num espetáculo de luxo e de brilho, como só nesta época do ano é possível ver. Por isso, não é de estranhar que, numa das centenas de lojas, na montra, estejam presentes os três reis magos, ricamente vestidos, e transportando, cada um deles, a oferenda particular com que presentearam Jesus. E é, justamente, nesta loja, a loja dos três reis magos, que se passa a história que vou contar…

Num destes dias de natal, na azáfama das compras, Safira entrou na única loja de antiquário que existia no Centro Comercial. Procurava uma travessa da companhia das Índias para compor um centro de mesa em sua casa. No interior da loja, não havia mais ninguém e o lojista, aparentemente ocupado com registos num grande dossiê de capa preta, ignorou a sua entrada. Safira foi percorrendo a loja, não muito grande, mas atravancada de muitas peças de mobiliário antigo, sobretudo, mesas, cómodas, armários e cadeiras, e sobre as quais objetos de ornamentação, como porcelanas ou vidros, se encontravam dispostos de uma forma aparentemente aleatória. Não encontrando o que procurava, Safira resolveu dirigir-se ao dono da loja, que entretanto fechara o dossiê e parecia agora atento à cliente que estava ali.

- Bom dia, - saudou Safira. – Procuro uma travessa da companhia das Índias. Por acaso, tem alguma?

- Uma oferta de natal? – Perguntou, desinteressadamente, o lojista.

- Uma oferta para mim mesma. – Respondeu Safira, com um sorriso. – O melhor presente deve ser para nós mesmos.

- Não pensaram assim Gaspar, Belchior e Baltasar… - Disse assertivamente o homem, contrapondo e acrescentou com um gesto que abrangia todo o espaço. – De qualquer forma, tenho tudo vendido. Recebi agora mesmo uma proposta de liquidação da totalidade do recheio da loja. Um único comprador! Apenas não vendi os três reis magos da montra! Está interessada em ouro, incenso e mirra?! Ofereço-lhos.

Safira, por momentos, perante o inusitado, não soube o que dizer; mas, de súbito, ocorreu-lhe que o homem estaria a falar a sério. Respondeu, então, que sim. E, conforme recebia nas suas mãos os três presentes, percebeu que, de facto, não eram a si que se destinavam. Ela tinha agora a extraordinária missão de entregar o maior presente da sua vida a alguém. Para quem?, perguntou ao lojista.

- Para todo Aquele que ame o próximo como a si mesmo. – Respondeu o lojista e acrescentou simplesmente – Vá pelas ruas… procure um casebre… saia daqui e sonde a cidade para além destes limites da ostentação… há de encontrar, se no seu Coração houver esse desejo e se, ao mesmo tempo, o seu Coração estiver despido de desejo: que seja o seu Coração a luz que aponta o direito caminho que conduz a um outro Coração iluminado. 

O pinheiro de natal


 


É no longe deste tempo que habito. Habito numa cidade estranha à memória da criança nascida em Belém há dois mil anos. Habito no meio dos écrans e dos outdoors luminosos e fantásticos, que são produto de uma técnica eletrónica que mais e mais avança com maravilha. Habito num tempo de viagens no espaço e de satélites artificiais que orbitam em torno da terra. E foi neste longe, em que habito, que te conheci.

Um dia, numa manhã de final de outono, de céu muito azul, como se fosse primavera, encontrei-te sentado no degrau de um grande edifício, numa avenida no centro da cidade, quase despovoada àquelas primeiras horas. Estavas rodeado de pequenos objetos esculpidos em madeira: um ou dois pássaros azuis, algumas borboletas amarelas e verdes, apitos vermelhos, grandes colheres e garfos envernizados e de tom natural, e muitos meninos-jesus pequeninos de cor dourada. E cantavas muito baixinho uma canção de embalar como se tivesses uma criança acabada de nascer nos teus braços, fazendo, ao mesmo tempo, com cadência, um sapateado com os pés. Todo tu eras música e dança. De corpo muito esguio e alto, moreno, vestido com um fato completo todo negro, era como se assinalasses uma origem distante e remota, e distinta, tão diversa neste espaço da grande cidade.

Não podia deixar de reparar em ti. E perguntei o teu nome. José, disseste tu. Donde vens, interroguei de seguida. E disseste-me então que vinhas de um longe muito longe e disseste tudo isso numa voz melodiosa e agradável ao ouvido, como quem continuasse a cantar. E, subitamente, parecendo lembrares uma coisa de importância, perguntaste-me se eu queria ver o local onde trabalhavas e onde vivias. Disse que sim, com agrado. E, levando a mão direita ao bolso do casaco, tiraste o telemóvel e puseste a passar as imagens em movimento.

Então eu vi. Vi uma outra cidade. Uma pequena cidade só com uma grande praça, ladeada de ruas estreitas com casas simples, caiadas de uma cor muito branca. E vi-te, nessa mesma praça, sob um grande pinheiro de altiva imponência secular, sentado num pequeno banco de pedra, a esculpires com um canivete um pedaço de madeira em bruto, que, aos poucos, ia ganhando uma forma. Cantavas baixinho e sapateavas com os pés. Mas estavas rodeado de gentes. Eram pastores, eram lavadeiras, era gente do povo e crianças, sentados no chão à tua volta como assistindo ao mistério da criação num silêncio respeitoso e como quem escuta a canção melodiosa com que se embalaria um filho. E esculpias, sem pausa, e num afago de amor, uma Rosa, e, nas tuas mãos, a beleza da flor ganhava uma forma que era um movimento também. Um movimento igual ao teu movimento dançante; e percebi, na clareza de um lúcido pensamento, que o teu Longe é, na suma distância, a estupenda maravilha desta terra e deste céu, onde um menino-deus vive e viveu.


Noite de Consoada



 

              Este profundo silêncio, depois que a chuva e o granizo fustigaram as ruas da cidade branca, lembra-me que pelos campos, chovendo, há um cheiro de terra que se exala brandamente, após o temporal. E este silêncio de paz é, para Mim, como um odor de terra bravia, e sonho, no silêncio, profundo, e todo meu, que algo me pertence.

              Talvez pudesse ser assim. Talvez o cheiro, a cor, o silêncio, a paz pudessem ser a parte material da minha vida e isto fosse o que bastasse para uma consoada feliz. Mas não basta, porque sei que agora, ao cair da noite, há anjos de deus que vagueiam tristes e perdidos, e sem esperança.

              Acerco-me, então, de uma janela e procuro, na densidade sombria do céu que já escureceu, uma estrela. Uma estrela igual àquela que guiou e conduziu os três reis para o estábulo mais mesquinho de Belém. Mas o meu céu denso, e carregado de neblina, ofusca, na noite, todo o brilho de luz e não posso, assim, ir ao encontro de um redentor para os desesperançados.

              Faço parte da triste miséria humana. Resigno-me, acomodada… os convidados para o jantar de noite de consoada estarão prestes a chegar… que diriam?, se, chegando, não me encontrassem em casa ou, se chegando, eu dissesse que partiria em busca de um salvador… Talvez um louco não equacionasse, em termos de lógica e de razão, motivos e justificações para não sair de casa, numa noite de natal, deixando para trás uma família, amigos, uma ceia. Mas como explicar que me tenha acercado da janela em busca de uma estrela que me conduzisse até àquele que pudesse resgatar a esperança no mundo? Estranha sanidade! Estranha loucura!

              Percebo que o que sinto em Mim é apenas uma suave perturbação. A minha habitual suave perturbação, que vem ao meu encontro, inesperadamente, como um aguaceiro que desaba de súbito num dia calmo e tranquilo sem avisar.

              Mas tocam, agora, à campainha da porta. É ainda cedo para a chegada dos convidados para a ceia de natal. Vou ver. É o filho mais novo, de quatro anos, da vizinha do lado, o Joaquim. Traz um prato de filhoses, acabadas de fazer para me oferecer e deseja-me um feliz natal.

              - Feliz natal, Joaquim, - digo eu também, procurando sair do torpor da minha perturbação e acrescento, perguntando – sabes onde há uma estrela, Joaquim?

              O Joaquim sorriu, disse que sim, correu a casa, e voltou, trazendo nas mãos uma estrela muito dourada, brilhante, toda oiro e luz, que estendeu para Mim. E eu tomei a estrela nas minhas mãos e perguntei:

              - Joaquim, posso seguir a estrela?

              Sorridente, o pequeno toma, de novo, a estrela das minhas mãos para as mãos dele, diz-me «-vem»; e eu sigo o caminho da estrela, como quem desce do céu uma escada até à terra.